As Atrizes do Grupo Galpão: Fernanda Vianna

Henrique Perez
12 min readNov 19, 2020

Esse perfil pertence à série O Teatro Brasileiro em Revista: As Atrizes do Grupo Galpão. Para melhor compreensão do mesmo, sugere-se a leitura prévia do texto introdutório.

Fernanda Vianna em O Inspetor Geral (2003). Foto: Guto Muniz.

Fernanda Vianna está atrasada. A mais cinematográfica (nas palavras de Eduardo Coutinho) das atrizes do Galpão teve seu cartão retido na farmácia. Manda diversas mensagens se desculpando. Quando chega em casa, 15 minutos depois, pede mais 15 minutos para higienizar e guardar as compras. Entretanto, quando finalmente entra na plataforma virtual onde a pandemia do coronavírus nos obrigou a conversar, aparenta sua habitual luz própria que me encanta desde que — ainda criança — assisti a icônica montagem de Romeu e Julieta dirigida por Gabriel Villela na Praça do Papa.

De celular na mão, cabelos presos (que ela soltou ao longo da entrevista) e sentada na cabeceira da cama (ao longo da entrevista, ela se acomodou com mais conforto a medida que foi ficando à vontade), Fernanda me conta que antes da pandemia dirigiria um balé infantil e filmaria um filme em São Paulo, com a diretora Juliana Rojas. Ela espera retomar os projetos assim que a pandemia passar. Enquanto isso está confinada em sua casa em Belo Horizonte com sua filha mais nova, Júlia, seu pai, Ruy, de 90 anos e a cadela pastor alemão Lady. Seu marido, o ator Rodolfo Vaz, está no Rio de Janeiro gravando a novela Amor de Mãe, cuja produção foi retomada recentemente. A filha mais velha, Luiza, há muito já constituiu família própria, e mora com o marido e os filhos na pousada que montou em Milho Verde, interior de Minas Gerais. O filho do meio, Lucas, joga futebol e tem bolsa de atleta para estudar nos Estados Unidos. “Dou boa noite pra ele todo dia por videochamada.” Ela continua a dar online as aulas de pilates que dava presencialmente e participa das atividades que o Galpão tem feito virtualmente.

O DNA artístico está no sangue de Fernanda. Sobrinha do lendário coreógrafo e bailarino Klauss Vianna, que ela chama de “culpado de tudo”, ela começou a tocar piano aos 6 anos no instrumento que o tio deixou em sua casa ao mudar-se de Belo Horizonte para São Paulo. Na mesma época, passou a gostar de cantar dividindo vozes com a mãe e a irmã quando viajavam de carro e entrou pro coral da escola.

Por definição do pai, médico e ex-atleta, os filhos tinham que fazer um exercício físico obrigatório. Fernanda não queria dançar balé: “Não tinha esse perfil. Gostava mais de jogar bola” conta com uma molecagem insuspeita. Foi aí que ela entrou, aos 8 anos de idade, para a escola de dança experimental Trans-Forma, de Marilene Martins, a Nena, tia de Lydia Del Picchia, sua futura companheira de Galpão, que ela conheceu já nessa época.

“Era o auge da contracultura, tinha homem, mulher, gente de todas as idades, aula de circo, de teatro. O Trans-Forma foi um berço incrível para muitas pessoas que hoje são importantes no cenário de Belo Horizonte: os Pederneiras, Dudude Herrmann, a própria Lydia… As pessoas precisavam saber mais sobre essa história. Foi onde aprendi a ser artista.” Em 1981, quando o grupo contratou um produtor, Fernanda estreou profissionalmente no espetáculo Escolha Seu Sonho, dirigido por Dudude. “Era tudo muito amador, não tinha salário fixo…” Apesar disso, foi quando fez sua primeira turnê, para o sul do Brasil. Ela tinha 16 anos.

Na mesma época, Fernanda fez, fora do Trans-Forma, o espetáculo Bing, que mesclava teatro e dança. A direção de Eid Ribeiro e o texto de Samuel Beckett foram um primeiro contato mais direto com o teatro.

Com 19 anos quis aprender mais técnica e foi estudar balé clássico. “Eu era hippie e elas (as bailarinas) me achavam um bicho grilo. Aí eu desanimei um pouco com a dança. Fui fazer vestibular.” Passou para medicina, mas engravidou na mesma época e trancou a matrícula. Se ela queria mesmo ser médica? “Eu gostava de corpo. Sempre ajudei meu pai que era médico.” Muitos anos depois, já uma atriz estabelecida, a paixão pelo corpo humano a fez se formar em fisioterapia e se especializar em pilates.

Mas na época, Luiza dominou sua vida: “Minha filha nasceu e eu não sabia nem meu nome. Dava aula de capoeira pra ter um dinheirinho.” Foi novamente o tio Klauss que fez justificar-se o título de culpado de tudo: “Ele me chamou pra ficar um tempo na casa dele em São Paulo e fazer uns cursos. Foi quando me apaixonei novamente pela dança.”

Quando voltou para Belo Horizonte, foi convidada para trabalhar no grupo de dança moderna Primeiro Ato, fundado em 1988 pela coreógrafa Suely Machado. “Era a primeira vez que eles tinham patrocínio e eu tinha um salário. Era um sonho. Eu estava ganhando para trabalhar com as pessoas que até então eu pagava para aprender”. Com o Primeiro Ato, Fernanda viajou pela primeira vez para fora do Brasil e ganhou seu primeiro prêmio, o Sated de Melhor Bailarina por Carne Viva (1992), dirigido por sua velha conhecida Dudude Herrmann. Também reencontrou Lydia. “Ela me persegue”, brinca a colega. “No Primeiro Ato eu cheguei primeiro”, retruca Fernanda no mesmo tom divertido.

Em 1992, começou a namorar Rodolfo, na época ator do Grupo Galpão, que estava fazendo Romeu e Julieta com direção de Gabriela Villela. “Eu viajava com eles para namorar”. O sucesso da montagem foi interrompido quando a atriz Wanda Fernandes, uma das fundadoras do Galpão e intérprete de Julieta no espetáculo, morreu em um trágico acidente de carro em 1994. “Quando eles montaram A Rua da Amargura, eu cuidava muito do João (filho da Wanda com o ator Eduardo Moreira, também integrante do Galpão) nos bastidores. Foi se criando uma proximidade na época da tragédia que levou a uma irmandade mesmo.”

Quando o diretor começou a falar em voltar com o Romeu e Julieta, a primeira atriz de São Paulo escolhida para fazer um teste não funcionou no papel. Foi quando ele viu Fernanda e perguntou se ela cantava. “Ele me perguntou: Você quer fazer um teste? Passei mal, minha pressão caiu, quase desmaiei”, ela recorda.

A montagem de Villela foi baseada no texto A tragédia da precipitação, de Peter Brook, que falava sobre a instabilidade presente nos jovens amantes. Para demonstrá-la, os atores andavam sempre na perna de pau ou na corda bamba. Quando a bailarina Fernanda assumiu o papel, o fazia de sapatilha, na ponta dos pés. “O princípio é o mesmo: Um pé no ar, o outro no chão”. As aulas de percussão que ela deu no passado também garantiram que Fernanda dominasse o pandeiro que tocava no início e no final do espetáculo. A principal questão era o texto, já que ela não tinha formação como atriz.

“Eu suava de nervoso debaixo do braço, não suava tanto na época de bailarina. Foi muito difícil. O Grupo foi muito generoso. A potência da palavra do Shakespeare me levou muito, me ajudou muito. E cantar. Eu tinha uma formação musical grande”. Sua pré-estréia se deu na Praça Alaska, em Belo Horizonte, seguida por uma estreia em Passos. “Não me lembro de nada da estreia. Só do final. Todo mundo se abraçava e chorava. É a única coisa que eu lembro. Logo depois, teve uma temporada no Rio de Janeiro, no Teatro Carlos Gomes, que foi uma grande faca na garganta. A classe artística toda já tinha visto, já era um sucesso. A gente entrava tocando pelo fundo do teatro e o dia que o Caetano Veloso assistiu ele chegou atrasado e entrou com a gente. Era nesse nível.” Fernanda passou na prova de fogo. Com ela o espetáculo correu o mundo (com direito a duas temporadas no Globe Theater, em Londres) e sua Julieta de rosto de palhaça e pés de bailarina ainda vive no imaginário das pessoas, principalmente em Belo Horizonte.

Fernanda em Romeu e Julieta. Foto: Adalberto Lima

Depois de Romeu e Julieta, Fernanda se integrou definitivamente ao Galpão e fez a maioria dos espetáculos do Grupo desde então. Com cada um e cada diretor, um aprendizado. Com Cacá Carvalho, aprendeu sobre o trabalho psicofísico do ator. Com Paulo José, a quebrar o texto e chegar ao fundamental da palavra. Com Enrique Diaz, a técnica dos viewpoints. “A gente aprende muito apanhando nos processos de criação.”

Com Um Molière Imaginário, dirigida pelo colega Eduardo Moreira, viajou para os cantos mais inimagináveis do país, do Vale do Jequitinhonha ao interior do Pará, muitas vezes em cidades que sequer tinham teatro: “Moliére era rua mesmo. A gente viajou muito. Teve uma turnê que saímos de Carajás (Pará) e atravessamos o Maranhão inteiro, que é o estado mais pobre que eu vi no Brasil, montando e desmontando no mesmo dia. Às vezes a gente chora umas mágoas da vida de artista, mas dessa parte de viajar e conhecer o mundo eu só tenho gratidão. Conheci o Brasil todo e muitos lugares no mundo, que eu não conheceria se fosse o teatro.”

Nos últimos anos, o Galpão abriu a possibilidade dos atores se “oxigenarem” com trabalhos externos, mesmo que ao custo da participação em algumas montagens do grupo. “Eu acho isso muito importante” pontua Fernanda. A política lhe permitiu fazer mais trabalhos no audiovisual.

Na televisão estreou em 2005, na minissérie Hoje é Dia de Maria, com direção de Luiz Fernanda Carvalho. “Um trabalho muito próximo ao teatro, ficamos três meses ensaiando. Isso não existe na TV”. Fez também a minissérie Justiça (“uma equipe muito específica dentro da Globo, bem mais próxima ao cinema”), uma novela das sete, Além do Horizonte (“bem maluca”) e um especial da Globo Minas, O Natal de Rita, no papel-título (“eu tive muita voz”). Fernanda reflete sobre as experiências: “O trabalho do ator é autoral mesmo na Rede Globo. A televisão é uma grande escola. Passei a respeitar muito o ator de televisão. É se virando contra muitas possibilidades de dar errado.”

Mas os olhos de Fernanda brilham mesmo ao falar de seu trabalho no cinema. Quando o Grupo Galpão fez Moscou com Eduardo Coutinho, o diretor falou que ela era uma atriz cinematográfica. “Talvez seja porque eu sou mais minimalista, atuo muito de dentro pra fora”, ela tenta explicar.

Fernanda e Rodolfo no filme Moscou (2009). Foto: Divulgação/Videofilmes.

Foi porque assistiu Moscou que o diretor Caetano Gotardo a convidou para fazer o filme O Que se Move, que lhe rendeu o Kikito de Melhor Atriz no Festival de Cinema de Gramado. “Fui pra Gramado fazer a coletiva. Não achava que eu tinha chance de ganhar nada. E tinha que voltar pra ensaio, aula. Estava estudando fisioterapia na época. No sábado, alguém me mandou uma mensagem falando que estava passando a premiação no Canal Brasil. Eu estava no quarto, deitada na cama com o Rodolfo. Liguei a televisão na hora da categoria de melhor direção, quando falaram do Caetano Gotardo, passou uma cena em que eu estava e falaram ‘E aí está a Fernanda Vianna que acabou de ganhar o prêmio de melhor atriz…’ Olhei pro Rodolfo, não sabia se ria ou chorava. Depois saí gritando pela casa. Fiquei triste por não estar lá. Só fui receber o prêmio numa festa na casa da Cida Moreira.” O minimalismo está lá.

Fernanda em O Que Se Move (2012) Foto: Divulgação

Desde então ela tem feito bastante cinema. Ela conta sobre seus projetos mais recentes e futuros com entusiasmo, desde o média-metragem universitário Os Dias que Escondem as Noites. (“Ninguém ganhou nada”) até o longa da Bananeira Filmes Fogaréu, de Flávia Neves, que ela filmou em Goiás Velho. “Já sei olhar o roteiro e ver se é bom. Li um projeto da HBO que eu sabia que seria ruim”. E foi.

Outra função que ela pôde exercer fora do Galpão foi a de diretora. No final de 2017, estreou o infantil Berenice e Soriano, com texto assinado por Manuela Dias, autora de Justiça e Amor de Mãe. A história da menina Berenice que sai ao mundo com sua boneca em busca do seu sabiá Soriano foi dirigida por Fernanda com um grupo de atores palhaços e muita música. “Quando a Manuela mandou o texto, ela queria que o Rodolfo fizesse a boneca. Ele ficou muito velho pro papel e ia dirigir, mas acabou não conseguindo por conta da agenda. E eu acabei dirigindo. Mas eu não dirijo para as crianças. Eu dirijo coisas que as crianças possam ver e gostar. O texto é lindo. (ela cita): Olha que lamúria é aboio de chamar fracasso”. O espetáculo foi produzido pela Oitis Produções Culturais, que ela fundou com Rodolfo em 2010, e ganhou o Prêmio Sinparc de Melhor Direção e Melhor Espetáculo Infantil.

Chegamos a um ponto da conversa em que me sinto confortável para perguntar se a minha impressão de que após a saída de Rodolfo do Galpão, ela foi se distanciando — se não artisticamente, ao menos pessoalmente — dos colegas do grupo era verdadeira. Ela confirma em parte: “Claro que a saída do Rodolfo me fez ficar com um pé pra fora. Mas continuo dando meu sangue e meu suor. É o meu trabalho e eu levo muito a sério. E ainda existe uma paixão e um vínculo muito fortes com o grupo.”

A montagem mais recente do Galpão confirma que (literalmente) Fernanda continua a dar o suor pelo grupo. Quando afirmo que Outros é o seu melhor trabalho como atriz, ela concorda prontamente: “Me senti em casa com o Marcio. Foi um trabalho radicalmente físico. Ser mais do que atuar no palco é muito prazeroso, mas muito difícil. O Marcio me proporcionou uma liberdade em cena que eu raramente tive na minha vida. Não é liberdade de mudar o texto ou a marcação, mas um estímulo permanente, que vem de um lugar muito pessoal. Não é nada cansativo. Se você não tiver esse estímulo, fazer teatro pode ser muito chato.”

A temporada de estreia do espetáculo, no Galpão Cine Horto, se deu em outubro de 2018, no auge da polarização e da efervescência política das eleições presidenciais que acabaram por eleger o candidato de extrema-direita Jair Bolsonaro (na época no PSL, atualmente sem partido). A cena que o “eu cênico” de Fernanda grita a palavra “não”, primeiro de uma maneira quase casual, mas que progride em uma crescente violência por 3 minutos se impôs como uma das mais impactantes do espetáculo (e possivelmente da história da atriz no Galpão). “Era preciso estar bem aquecida. Acabei com minha voz algumas vezes”, comenta Fernanda. A intensidade dela parece liberar adrenalina do corpo da plateia, que se sente propensa a se levantar e gritar também (não era incomum ouvir um coro de “nãos”). Quando foi concebida durante o processo de criação do espetáculo, a cena nada tinha a ver com o movimento Ele Não, que se posicionou contra Bolsonaro durante as eleições. Mas o casamento foi perfeito: “A ideia era falar não para todas as repressões que as mulheres sofrem na sociedade”. O discurso feminista também está presente na canção que ela canta — tocando baixo, aprendido especialmente para o espetáculo — no rockeiro set musical que abre a peça. “Eu não quero me calar Eu escolho onde morar” canta Fernanda. É ela também a responsável por um igualmente impactante número de dança ao final do espetáculo, em que diante de um silêncio cru, ela parece tentar expurgar com seus movimentos toda a dor que nós outros sentíamos naquele momento do país. Quem viu não esquece.

Fernanda na cena da dança em Outros. Foto: Guto Muniz.

Vinda de um trabalho tão impactante, pergunto se Fernanda já pensou em seguir o caminho de Rodolfo e sair do coletivo: “Não em sair do Galpão, mas eu fiz fisioterapia pra ter um plano B, porque a carreira de ator não tem estabilidade nenhuma. E a gente que tem filhos precisa de um plano B. Quando eu entrei no Grupo, foi o início do patrocínio de manutenção, quando começamos a ganhar um salário fixo além dos cachês. Agora eu conversei com uma menina que foi convidada pra fazer a peça do Gabriel com o Maria Cutia (Auto da Compadecida), e ela não pode fazer porque precisava dar aulas. Ela me falou: ‘Você começou quando os patrocínios surgiram, e agora eu tô começando quando eles sumiram’. Ela quase morreu por não fazer. Mas é uma dúvida que sempre acompanha o ator…”

Ainda assim, Fernanda me incentiva a fazer teatro: “Ninguém devia ser ator, mas todo mundo devia fazer teatro”, brinca. “Mesmo que você não siga uma carreira profissional, o teatro é uma grande possibilidade de se conhecer e de se transformar. Eu tenho uma gratidão enorme por isso. A dança também, mas o teatro te mostra mais na cara, é mais bruto. Você passa muita vergonha. Todo mundo tem uma imagem muito definida de si mesmo e o teatro quebra tudo.” Para ilustrar seu pensamento, ela se lembra das unhas vermelhas da Helena de Tio Vânia que ficaram pra sempre na vida de Fernanda (ela as mostra impecavelmente feitas, mesmo na pandemia). “Aprendi a força que existe na fragilidade feminina ali; Fiquei mais mocinha depois do Tio Vânia, por causa da Yara (de Novaes) e da Helena.”

Ela termina comentando o estímulo pessoal que a faz adorar fazer outro espetáculo do Galpão: o sarau De Tempo Somos: “O tempo todo estou ali me questionando o que é ser artista... Eu penso em todos os artistas, tanto os reconhecidos como os milhares que não tem a dignidade de conseguir viver de sua profissão. Penso na entrega que é ser artista. Eu choro quase todo espetáculo. Quando eu faço as canções do Romeu e Julieta, eu canto para o Romeu e Julieta. Passa toda minha história, toda minha trajetória, todos meus questionamentos na cabeça. E eu continuo”. ¿Quién dijo que todo está perdido? Fernanda Vianna vien a ofrecer su corazón.

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Henrique Perez

Jornalista e produtor cultural, apaixonado por teatro, cinema e música brasileira. Viver é melhor que sonhar.