As Atrizes do Grupo Galpão: Teuda Bara
Esse perfil pertence à série O Teatro Brasileiro em Revista: As Atrizes do Grupo Galpão. Para melhor compreensão do mesmo, sugere-se a leitura prévia do texto introdutório.

Esse texto foi publicado originalmente, em versão adaptada, na edição 343, de abril de 2019, do Marco, jornal-laboratório do curso de jornalismo da PUC Minas. Embora Teuda não tenha sido incluída originalmente nesse trabalho de conclusão de curso, por já ter sido definitivamente biografada e perfilada por João Santos no livro Comunista Demais para ser Chacrete (2016), optei por reeditar esse texto pela relevância histórica do contexto do depoimento.
Teuda Bara me recebe em sua casa, no bairro Santo Antônio, região centro-sul de Belo Horizonte no dia 29 de outubro de 2018, segunda-feira, a manhã seguinte da histórica eleição de Jair Bolsonaro como presidente do Brasil. Conhecendo sua história de mulher de 77 anos, mãe, artista, ex-estudante de Ciências Sociais da UFMG em plena ditadura militar e operária incansável do teatro brasileiro há mais de 40 anos, chego a ligar para Bárbara, assessora de comunicação do Grupo Galpão perguntando se ela não preferia remarcar a entrevista. Para minha surpresa, ela afirma que Teuda quer fazê-la.
Vou para a casa dela, no horário marcado. Depois de meia hora, surge, de cara e cabelos lavados, de quem acabou de acordar e tomar banho, a figura inconfundível, que habita meu imaginário (e de grande parte do povo belo-horizontino) desde que a vi, ainda criança, fazendo a Ama na lendária montagem do Grupo Galpão para Romeu e Julieta, na Praça do Papa. Ela pede para comprarem uma água de coco, para se desintoxicar : “Eu fiquei tão puta ontem, tomei tanta cachaça...” E em seguida solta sua inconfundível risada, marca de uma alegria tão exagerada quanto genuinamente verdadeira.
Antes de qualquer pergunta ser feita, ela começa a contar que depois de votar, com o adesivo do candidato derrotado Fernando Haddad, do PT, foi confrontada em uma farmácia por uma eleitora de Bolsonaro que começou a gritar “O Lula está preso” e a filmá-la. “Eu devia ter derrubado o celular dela.” Mais uma risada.
Na ocasião da entrevista, Teuda estava em cartaz com a temporada de estreia de Outros no Galpão Cine Horto, sede do grupo do qual ela é membra fundadora e atriz há 37, quase, ininterruptos anos (desconta-se três, quando no início dos anos 2000, ela foi para Las Vegas atuar no espetáculo KÀ, do Cirque du Soleil, a convite de Robert LePage, que a tinha visto em Romeu e Julieta em Londres. Ela não falava uma palavra em inglês na época.)
“Outros” é a segunda peça do Galpão dirigida pelo curitibano Marcio Abreu, um dos mais celebrados encenadores do teatro brasileiro contemporâneo. Se na anterior Nós, que também estreou em momento conturbado da política brasileira (o impeachment da presidenta Dilma Rousseff), eles questionavam os conceitos de público e privado a partir de um olhar para o interior do próprio grupo, aqui eles olham para fora. E parecem revelar mais do que nunca sobre eles mesmos. A dramaturgia foi concebida coletivamente a partir de performances feitas pelos atores em vários pontos da capital mineira, onde eles interagiam com os transeuntes. O que os outros têm a dizer?

Teuda, que na época do processo, tinha acabado de operar o joelho, não participou das performances, mas recebia diariamente cartas dos colegas e textos de Marcio para ler. “Trabalhar com ele é uma surpresa, ele é uma pessoa muito aberta. O Marcinho sempre traz uns textos dificílimos. Eu não ia participar por causa da cirurgia e de minha recuperação. Fiquei internada quase dois meses. Eu fiz esse espetáculo porque ele insistiu muito.” Ainda bem.
Pergunto sobre um momento do texto, em que sua personagem, ou melhor, seu “eu cênico” fala que tem medo de virar estátua. “Isso é um sonho do Eduardo (Moreira), uma estátua minha na Praça do Papa.” Ela ainda não virou estátua, mas foi retratada em gigantesco mural (11 metros de largura por 8 de altura) que ocupa uma parede inteira da Rua Guaicurus, no centro de BH.
Ao falar da peça, Teuda enche de elogios seus colegas de cena, sobretudo as mulheres: “A Fernanda (Vianna) é linda. A cena do “não” é maravilhosa. A Lydia (Del Picchia) é uma popstar nata, uma rockeira. Eu adoro a música que ela canta no início. Elas assumiram bastante a posição feminista.” E cantarola, de peito aberto: “Deixa ela falar!”
Conta da apresentação do dia anterior, certamente histórica na trajetória do Galpão: “Nós estávamos em cena desde as 4 horas da tarde, passando o texto, ensaiando. Na hora da apuração, estávamos em cena. O espetáculo ontem foi mais forte do que nunca. E depois, choramos muito. Nós e o público.”
Pergunto a ela sobre o sucesso de Romeu e Julieta, a peça mais famosa do Galpão: “A gente trouxe Shakespeare pro nosso universo mineiro, com as serestas, o barroco. Quando a gente fala da gente, a gente fala pro mundo.” E arremata sobre o encontro do Galpão com Gabriel Villela: “Os diretores são loucos, graças a Deus.” E desconversa sobre a importância do Galpão: “Temos a consciência do grupo, da nossa longevidade. Mas não sei quanto.”
Ainda sem saber da tragédia de Brumadinho que ocorreria dali a alguns meses, Teuda lembra de quando durante o processo de Nós, foi provocada por Marcio a escrever um manifesto que expressasse o que a angustiava nesse naquele momento. “Eu enlouqueci. Não sei escrever. E ele foi me ajudando.” O resultado é uma das cenas mais impactantes da trajetória do Galpão, em que com o corpo nu repleto de lama, Teuda faz um protesto pelas vítimas da tragédia de Mariana ocorrida em 2015.

E de repente, ela corta o fluxo do assunto e volta a repetir: “Eu fiquei tão puta ontem. Tomei tanta cachaça. Eu só tô bem porque a cachaça era boa. Veio todo mundo prá cá depois do espetáculo. Resolvi não ficar triste, fizemos um samba. Nem pensava mais que ia cantar Vandré, Chico Buarque… Apesar de você…”
“Eu vivi grande parte da minha vida na ditadura. Indo votar hoje, lembrei de ter aula na Fafich com militar na sala. Essa sombra da censura me assusta muito. Eu trabalhei na Livraria do Estudante, a dona e a diretora foram presas. Ficamos 40 dias sem notícias delas. Eu sei o que é isso. Eu tive amigos mortos, torturados. Eu não fui torturada mas tive amigos torturados, que enlouqueceram até hoje por causa da tortura. Eles subiram no palco do Roda Viva e espancaram os atores.”
“E essa demonização da cultura é assustadora. Já ouvi de pessoas da minha família que me disseram que nós mamamos na teta do governo. E elas não sabem, por exemplo, quantos empregos são gerados, quantas pessoas sustentam a família com o dinheiro do trabalho artístico do Galpão. (Ela pega o programa de Outros, disposto sobre a mesa, e passa o dedo na ficha técnica) É muita gente. E isso não é só no Galpão. Quando viajamos, contratamos carregadores nas cidades, para levar os baús do cenário…”
A lembrança da ditadura é deixa para falar de seu encontro com José Celso Martinez Corrêa, um dos diretores mais importantes do teatro brasileiro: “Zé Celso é mesmo essa coisa linda e maravilhosa que todo mundo acha que ele é. Ele tinha sido torturado e acabado de voltar do exílio , quando veio apresentar uma peça, Ensaio Geral do Carnaval do Povo em Belo Horizonte, e aí eles convidaram alguns artistas locais para participar. Era um espetáculo de rua. Nós entrávamos cantando (e para meu encanto, ela volta a cantarolar, como se transportada magicamente para a época): “Sambando nesse Carnaval, com a minha alma que é imortal (…) Bandeira…passamos com bravura, distribuindo a toda gente distração e cultura. (…) Na história do Brasil sempre se fez presente… Tenho certeza, tenho a esperança, canto alegria nesse dia de folia. “Nós fizemos na escadaria da Igreja São José, fizemos no refeitório da UFMG, entramos nas cozinhas, as cozinheiras cantavam. Aí eu não aguentei e fui atrás dele pra São Paulo.”
Faço a pergunta final, quase inevitável para artistas de certa idade. “Você pensa em parar?”. Tão inevitável quanto a pergunta, é a resposta: “Claro que não. Eu gosto de conversar, gosto do contato com o público.” E eu rebato, mais como fã do que como jornalista: “E o público te ama, né?” Ela gargalhou mais uma vez, porque sabe a resposta: “Incrível isso, não é?”
Quando nos despedimos, depois que dou a ela duas palhas italianas, que ela adora (o maracujá, sua fruta preferida está fora de época) e ela me conta que vai ler um roteiro de um filme que vai filmar no Rio, Teuda reafirma que não tem nada a temer. Vindo o que virá, ela seguirá em frente. E sempre no teatro, para nossa sorte.