As Atrizes do Grupo Galpão: Inês Peixoto

Henrique Perez
11 min readNov 12, 2020

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Esse perfil pertence à série O Teatro Brasileiro em Revista: As Atrizes do Grupo Galpão. Para melhor compreensão do mesmo, sugere-se a leitura prévia do texto introdutório.

Inês Peixoto em Till, a Saga de um Herói Torto (2009). Foto: Guto Muniz.

27 de agosto de 2020. Exatamente há um ano, Inês Peixoto se preparava para estrear o monólogo Órfãs do Dinheiro, seu primeiro trabalho solo em teatro desde que ingressou no Grupo Galpão em 1992. Com dramaturgia da própria Inês e direção de seu marido, o ator Eduardo Moreira, o espetáculo estreou no dia 28 de agosto de 2019 na Sala João Ceschiatti, no Palácio das Artes. A temporada de estreia contou até com Milton Nascimento na platéia. Eu, como não poderia deixar de ser, fugi do repouso pós-operatório de uma cirurgia na tireoide recém-realizada para assistir ao espetáculo. “Fiquei comovida com a sua fuga para o teatro”, me diz Inês, com sua delicadeza característica e uma sinceridade tão palpável que não posso deixar de pensar como valeu a pena a “fuga”.

Agora, um ano depois, Inês deveria estar viajando com o espetáculo solo e também com Quer Ver Escuta, espécie de antologia performática da poesia brasileira contemporânea feita pelo Galpão com os diretores Marcelo Castro e Vinicius Souza. Por causa da pandemia do coronavírus está confinada em casa, mas longe de estar parada ou longe do teatro. Retomou à faculdade de Cinema e Audiovisual na UNA, que tinha começado em 2009 e trancado pela dificuldade de conciliar com as viagens do Galpão. É diretora artística da web série Quarentemas, realizada pelo projeto Teatro em Movimento, onde 20 atores foram provocados a criar cenas curtas com gatilhos temáticos ligados a quarentena. Está no filme Éramos em Bando, que documenta a tentativa do Galpão em continuar virtualmente o processo do Quer Ver Escuta. E chegou a apresentar para platéia virtual seu solo diretamente do palco do Teatro Feluma, em Belo Horizonte.

O teatro entrou na vida de Inês quando ela tinha seis anos e assistiu ao espetáculo infantil Liderato, o Rato que Era Líder (1967), dirigido por Pedro Paulo Cava. “Minha irmã mais velha, Ana, tinha uma amiga atriz, Sandra, que fazia o espetáculo e ela me levou pra assistir no Teatro Marília. Foi um arrebatamento. Tenho até hoje na cabeça as imagens da peça, os personagens, as músicas. Decidi com seis anos que queria fazer aquilo, sem nem entender direito o que aquilo era.”

A busca pelo teatro foi uma busca solitária para Inês na adolescência. Escolher ser atriz em plena ditadura militar não era exatamente uma escolha bem aceita. “A família não proibiu, mas eles não tinham como ajudar.” Após breve passagem pelo Teatro Universitário da UFMG, foi estudar no Cefart, o Centro de Formação Artística da Fundação Clóvis Salgado. Ali começou a conhecer as pessoas da cena teatral belo-horizontina. “Eu estava doida pra fazer teatro e na Fundação já no segundo ano tinha montagem. E tinha um projeto chamado Arte na Escola, em que a gente rodava o ano inteiro com espetáculos em escolas da periferia de Belo Horizonte. Íamos com estruturas autônomas numa Kombi. E foi aí que eu comecei a encarar se era isso mesmo, entender e enfrentar espaços diferentes.” O entendimento de espaços plurais, tão característico no trabalho do Galpão, já estava ali, no cerne da formação artística de Inês.

Quando saiu da Fundação, Inês ficou uma década trabalhando em produções diversas em Belo Horizonte, como Brasil, Mame-o ou Deixe-o (1982), de Luiz Carlos Moreira, Quando Fui Morto em Cuba (1983), de Belisário Barros e Casablanca, Meu Amor (1989), texto de Fernando Arrabal e primeira direção de Yara de Novaes, que Inês também produziu. “Era uma época que a gente conseguia pagar tudo com a bilheteria. Viajávamos pro interior, colocávamos o cenário num caminhãozinho, fazíamos parceria com os jornais e hotéis locais.”

Quando participou de No Cais do Porto (1987), comédia musical de Ricardo Batista, Inês se aproximou dos atores-músicos que fundariam a lendária banda brega Veludo Cotelê. “Eles fizeram um show no Cabaré Mineiro e eu e a Amaziles Almeida, que era a outra atriz que fazia o espetáculo, pedimos pra ir dançar no palco. E nesse dia, duas pessoas compraram o show, e falaram ‘mas tem as veludetes também né? Aí a gente brinca que eles foram obrigados a nos contratar.”

Com Adilson Rodrigues (Xiló) na bateria, André Cirilo no saxofone, Flávio Guerra nos teclados, Pedro Piula na guitarra, Tchello Millo no baixo e Andreia Garavello, Kaverna, Parara, Amaziles e Inês nos vocais, a banda marcou época em Belo Horizonte e viajou por todo Brasil, com sua mistura de música brega, rock e teatralidade. O único disco The Best of Veludo Cotelê (1988) — propositalmente titulado como uma coletânea — pode ser ouvido em todas as plataformas digitais e costuma ser vendido por quantias altas em sebos e sites especializados. “Foi um período muito rico de trabalhar improviso. Era muito verdadeiro, muito anárquico. A gente fazia clipes ao vivo, uma performance pra cada música. Fizemos um show memorável no coreto da Praça da Liberdade. Tinha uma grana legal. Conseguíamos viver da arte. Sobreviver no estado de Minas Gerais era complicado. A questão do eixo Rio-São Paulo era muito maior nessa época.” Inês ficou na banda até 1991.

A banda Veludo Cotelê. Foto: Acervo Pessoal Inês Peixoto.

Em 1990, quando cumpria temporada com o Veludo em São Paulo, Inês assistiu a um espetáculo do Gabriel Villela, Vem Buscar-me que Ainda Sou Teu. Com texto de Carlos Alberto Soffredini e grandes nomes como Laura Cardoso, Lucinha Lins e Xuxa Lopes no elenco, a peça rendeu a Gabriel os prêmios Shell e Molière de Melhor Diretor. “Quando eu vi o teatro dele, eu pensei: tá tudo errado, não quero fazer nada do que eu tô fazendo, quero fazer isso. Sabe aquela destruição que te reconstrói? E eu já estava afim de voltar a fazer texto, personagem.” Ela conseguiu fazer uma oficina com Gabriel e o encantamento aumentou.

Na mesma época, enquanto fazia um filme do Rafael Conde, Inês encontrou Teuda e Toninho na espera do camarim. “Nunca tinha tido muito convívio com ninguém do Galpão não. Mas como todo mundo do meio em Belo Horizonte, eu conhecia a Teuda. Aí eles contaram que iam fazer um espetáculo com o Gabriel e eu achei o máximo. Um ano depois, o Toninho me liga pra me convidar para fazer uma série de workshops que eles iam apresentar para o Gabriel. Eu lembro que era um janeiro chuvoso. Nunca tinha tido essa experiência de workshops, achei uma viagem, adorei a metodologia. O Gabriel lembrou de mim do curso. Aí alguns meses depois o Eduardo me ligou pra convidar pra fazer o Romeu e Julieta. Foi muito inesperado… O Galpão tava sem grana, tinha comprado os microfones sem fio. A gente não ganhava pra ensaiar. Mas eu tinha alguma reserva de dinheiro e queria ter a experiência. O Romeu e Julieta do Galpão foi feito com muito amor, muita raça. E eu me identifiquei com a maneira de trabalhar, o espaço, os processos mais longos. E acabei ficando no grupo desde então.”

No Galpão, Inês fez papéis memoráveis como a golpista Belinha de Um Molière Imaginário (1997), a Sra. Galy Gay, com sua divertida divisão das palavras em Um Homem é um Homem (2005), o personagem título de Till, a Saga de um Herói Torto (2009) e a Condessa Ilse, atriz decadente com dificuldade de separar ficção da realidade na fábula Os Gigantes da Montanha (2013), seu reencontro com Gabriel Villela (em 2019, ela adaptou o texto da peça para o formato de HQ com ilustrações de Carlos Avelino e Bruno Costa). No grupo também se aproximou de Eduardo, com quem tem uma filha, Bárbara, de 18 anos, que já estreou como atriz no cinema em O Menino no Espelho (2014). Inês já era mãe de Thiago e Eduardo de João. Os dois, unidos pelo teatro e pelo casamento, se tornaram pais também dos filhos um do outro.

Inês (ao centro) como a Condessa Ilse em Os Gigantes da Montanha (2013). Foto: Guto Muniz.

Em 2005, após algumas participações esporádicas no audiovisual, Inês fez uma estreia memorável na televisão: “O Rodolfo (Vaz) estava trabalhando com o Luiz Fernando Carvalho e a Luciana Buarque no Hoje é Dia de Maria. E um dia o Luiz veio conhecer o Galpão. A gente tocou pra ele algumas músicas, ele apresentou o projeto pra gente. Algum tempo depois, estávamos em turnê no centro-oeste, e eu recebi uma ligação e me convidaram pra fazer um teste para o papel da madrasta da Maria. Eles me mandaram o texto, falaram pra eu estudar uma cena, e assim que eu voltasse da turnê eu iria pro Rio fazer o teste. Era uma cena que a madrasta quebrava a casa toda em cima do marido. A Luciana me maquiou, o Osmar Prado foi especialmente fazer o texto comigo, eu achei o máximo, ele é um puta ator. Fizemos um teste incrível. O Luiz Fernando me chamou no canto e falou que eu ia fazer a personagem, me deu a agenda de gravações, falou pra eu levar pro Galpão. A gente estava montando Um Homem é um Homem. E o Paulo José incentivou, falou que era um projeto ótimo. Mas passou mais um tempo e ninguém me ligou, achei que tinha dançado, tava bonito demais pra ser verdade. Quando o Luiz me ligou, ele disse que a atriz que originalmente ia fazer a madrasta tinha ficado disponível. A atriz era a Fernanda Montenegro. E eu agradeci, tinha achado só a experiência até ali maravilhosa. Mas ele disse que tinha escrito um papel especialmente pra mim, a Rosa, em que eu fazia uma espécie de dupla com o Daniel de Oliveira, que também é mineiro, como dois irmãos que acolhem a Maria quando ela foge de casa. E na segunda jornada, ele escreveu a Dona Boneca pra mim, outro personagem lindo. E foi assim que eu entrei pra televisão. Eu nunca tinha pensado em fazer até então porque eu não tinha coragem de levar meu filho pra uma vida incerta ou de deixar ele aqui e ir.”

Inês sendo dirigida por Luiz Fernando Carvalho no teste de Hoje é Dia de Maria. Foto: Acervo Pessoal Inês Peixoto.

Desde então, Inês fez as minisséries A Cura (2010) (no memorável papel da misteriosa Edelweiss) e A Teia (2014), episódios de seriados como Toma Lá Dá Cá (2007) e Sob Pressão (2018) e as novelas Meu Pedacinho de Chão (2014) (em que reencontrou Luiz Fernando), Além do Tempo (2015/2016) e O Sétimo Guardião (2018/2019).

A última lhe rendeu conflitos de agenda com o espetáculo Outros, do Galpão. “Era uma novela das oito. E quando você faz televisão, você tem um pé-de-meia né, carteira assinada por 10 meses… O Marcio (Abreu) foi generoso, disse pra a gente ver o curso das coisas, pra eu ir continuando no processo da peça. É claro que é uma situação difícil com o grupo. Não é dizer que um trabalho é mais importante que outro, mas no atual contexto da cultura do Brasil, recusar um papel desses… Como no Outros não tinha personagens, ele dividiu minhas falas pros dias que eu não conseguia fazer… Foi muito cansativo, eu corria de uma cidade pra outra, tentava fazer o máximo de espetáculos que eu podia. É conflitante sim, são momentos confusos. Mas são oportunidades que surgem. A vida do artista é sazonal.”

Fazer cinema para Inês também é sempre uma oportunidade: a de encontrar pessoas. “Eu fiz uma participação em um filme do Ruy Guerra (Quase Memória, 2016), fiquei dois dias só gravando, mas estar na presença daquele homem histórico. Ele cismou em botar a câmera no teto pra gravar uma cena e não descansou até botarem a câmera no teto. Você presenciar um diretor desses de quase 90 anos dirigindo é uma experiência fantástica. Ou em um filme como As Duas Irenes (2017), que era o primeiro longa do Fabio Meira, também é muito interessante trabalhar com pessoas mais jovens.”

Em fevereiro desse ano, ela filmou um filme inédito com a Elza Cataldo, Órfãs da Rainha. Com Elza, ela já tinha feito Vinho de Rosas (2005) e O Crime da Atriz (2007). “Amo fazer trabalho de época. E amo contar histórias femininas.”

A vontade de contar histórias femininas levou Inês a fazer o monólogo Órfãs do Dinheiro, estreado, como já dito, um ano antes dessa conversa: “Eu tinha muita vontade de fazer um monólogo, e trabalhar em toda a concepção, ser trabalho muito autoral. E eu tinha vontade de imergir em questões femininas. Fui coletando histórias, na família, em livros, histórias que me afetavam de alguma maneira. Mas eu ainda não tinha conseguido achar um gancho. Eu só tinha a imagem de uma mulher em uma canoa. Aí eu li o livro O modernismo localista das Américas, do meu cunhado, Paulo da Luz Moreira. É um livro de literatura comparada, e tinha um capítulo que chamava Órfãs do Dinheiro, onde ele analisava três contos, um do William Faulkner, um do Guimarães Rosa e um do Juan Rulfo, que tinham em comum personagens femininas que estavam em situação de vulnerabilidade por depender financeiramente dos outros. E aí eu achei meu gancho. A questão me interessava. A questão da dependência econômica da mulher coloca ela em um lugar de grande fragilidade. Ela estará sujeita a mais abusos, violências quando depende financeiramente de alguém. Eu não queria aquelas histórias, mas pedi pra usar o título do capítulo. Aí comecei a desenvolver as histórias no período que eu estava fazendo a novela, sozinha no hotel, esperando pra gravar. Uma mulher explorada sexualmente desde criança, uma imigrante com o filho em busca de refúgio e uma doméstica sonhadora que também foi abusada por patrões a vida inteira. E são personagens que eu escrevi pensando no meu corpo, na minha embocadura. Eu poderia ser qualquer uma dessas mulheres se a minha história tivesse sido diferente. É um espetáculo que eu quero fazer muito ainda, é muito regenerador pra mim. Ele é muito simples, mas me faz muito bem como artista. São situações que me indignam, e que eu consegui trazer para o lúdico do teatro, convidar o público para viajar comigo nessa canoa e pensar sobre essas questões.”

Inês em Órfãs do Dinheiro (2019). Foto: Flávia Canavarro.

De fato, tanto como autora (o fluente texto é o primeiro trabalho de dramaturgia apresentado publicamente por Inês) quanto como atriz (em um comovente registro tragicômico que cabe perfeitamente para comunicar ao espectador as histórias e diferenciá-las), Órfãs do Dinheiro é um grande momento de Inês no teatro e valeu completamente a minha fuga do repouso pós-operatório. O espetáculo está concorrendo em quatro categorias no 20º Prêmio Cenym de Teatro: Melhor Atriz, Melhor Texto Original, Melhor Monólogo e Melhor Iluminação.

Já tendo sido (e sendo perpetuamente em sua vocação de artista) cantora, dramaturga e diretora de teatro (ela dirigiu, entre outras coisas, um dos espetáculos solos de Teuda Bara, Doida, em 2015) e cinema (ela dirigiu em parceria com Rodolfo Magalhães o média-metragem Para Tchékhov, baseado nos contos do autor russo e feito na base — como ela brinca — do orçamento do Mágico de Oz, o orçamento zero), Inês é acima de tudo atriz, onde ela pode ser todas as outras coisas. “Eu adoro ser atriz. Seja no cinema, na televisão ou no teatro, eu adoro ser atriz.” E com 60 anos completados na véspera da nossa conversa, ela sabe o que quer: “Quero fazer muitos personagens ainda. Muitos.” Que eles venham!

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Henrique Perez
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Written by Henrique Perez

Jornalista e produtor cultural, apaixonado por teatro, cinema e música brasileira. Viver é melhor que sonhar.

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