As Atrizes do Grupo Galpão: Lydia Del Picchia

Henrique Perez
11 min readNov 26, 2020

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Esse perfil pertence à série O Teatro Brasileiro em Revista: As Atrizes do Grupo Galpão. Para melhor compreensão do mesmo, sugere-se a leitura prévia do texto introdutório.

Lydia Del Picchia em A Rua da Amargura (1994). Foto: Guto Muniz.

Lydia Del Picchia não para. Em 2019, ela viajou pelo Brasil com um repertório de quatro espetáculos do Grupo Galpão, deu oficinas de teatro em vários Estados, inclusive em Roraima, dirigiu duas cenas curtas para o espaço La Movida Microteatro Bar (Projeto Poema com Luiz Rocha e A Queda com Jimena Castiglioni) e foi assistente de seus velhos conhecidos Gabriel Villela e Marcio Abreu nos espetáculos O Auto da Compadecida e Vinte, respectivamente.

Em 2020, o ritmo frenético de produção artística não parou. Mesmo em quarentena com as filhas Alice e Helena, ela segue envolvida ativamente nos projetos virtuais do Galpão e estreou online um inusitado show solo, Rita Lydia (pronuncie em voz alta para entender a referência), com o repertório da rainha do rock brasileiro. A escolha por Rita Lee não é por acaso.

Lydia sabe de onde veio. Pergunto quando se descobriu artista, ela prontamente diz, orgulhosa: “Vou começar com as minhas origens.” Começou aí uma fascinante narrativa de quase quatro horas, que começa com seus avós maternos, em Teófilo Ottoni, que tiveram quatro filhas, dois pares de gêmeas.

“Duas das gêmeas estudaram piano, viraram concertistas e mudaram para Belo Horizonte com 15 anos. As outras gêmeas vieram também para serem bailarinas. Os meus avós acabaram vindo também e minha avó convenceu meu avô a comprar um terreno, onde tem o prédio que minhas tias moram até hoje, no (bairro) Funcionários. E ali embaixo, minha tia Nena (Marilene Martins) criou em uma salinha uma escola de dança, o Trans-Forma.” Em outra sala, foi criada a Escola Villa Lobos, de música popular e erudita, para adultos e crianças.

Da esquerda pra direita: Marlene, Maria Amália, Maria Amélia e Marilene. Foto: Acervo Pessoal Lydia.

Do lado paterno, o sangue artístico também corria: o pai de Lydia é violinista. “Comecei a estudar música muito cedo. Meu pai é de São Paulo, eles se casaram, antes deu nascer, foram pra Brasília, depois pra Recife. Quando eu nasci, vieram pra Belo Horizonte pra eu nascer. Aí voltaram pra Recife, depois pra Salvador e depois pra São Paulo, onde eu vivi até os 12 anos. Sempre trabalhando em escolas e orquestras. Estudei na Fundação das Artes de São Caetano do Sul, fui aluna do José Eduardo Gramani.”

Quando os pais se separaram, Lydia voltou para Belo Horizonte com a mãe e começou a estudar dança. O Trans-Forma tinha se transferido para o terceiro andar do Colégio Arnaldo, em um espaço maior. “Eu era uma criança muito fechada, muito tímida”. Ela se encontrou na dança. “Comecei a fazer duas aulas por dia. Com 14 anos virei monitora da Nena e com 16 comecei a dar aula para meninas de 12. E eu era menor do que sou hoje (risos), no primeiro dia elas nem acreditaram que eu era a professora.” No caso de Lydia, a grandeza está além do tamanho físico.

Lydia com Fernanda Vianna na época do Trans-Forma. Foto: Acervo Pessoal Lydia.

O Trans-Forma e sua tia Nena foram a base do trabalho de Lydia como artista: “A Nena não me deu só uma formação, ela me deu uma paixão. Ela é uma mulher muito inspiradora. Largou mão de um casamento com um médico porque não queria ir pro interior e abrir mão da sua escola de dança. Ela queria descobrir o que era a dança brasileira. Eu fiquei oito anos lá, trabalhando com muita gente, tanto na escola quanto no grupo de dança. Se você pensar em um bailarino hoje, existe um estereótipo físico, imagina há 40 anos atrás? E o Trans-Forma era a escola de todos, não existia um corpo ideal para a dança. Você só precisava querer dançar. Era um espaço de muita diversidade, que acabou sendo uma escola de vida também.”

Ainda muito nova, foi chamada para trabalhar na escola de dança no Palácio das Artes (que ainda nem era Cefart) e ser assistente de direção no espetáculo Rex, da companhia. “A companhia de dança era o oposto do Trans-Forma, tinha um rigor muito grande. Eles estavam indo para uma linguagem mais contemporânea, mas tinham formação clássica.” Acabou ficando lá 10 anos.

Em 1989, Lydia foi com um então namorado, bailarino do Grupo Corpo, estudar em Nova York, cidade onde já havia feito uma excursão artística ao Alvin Ailey American Dance Center aos 16 anos, presente da tia Nena. Lá dividia apartamento com uma amiga, trabalhava num ateliê de confecção de bijuterias e estudava na escola de José Limón, um desejo antigo. “Nova York era a cidade dos sonhos, a cidade onde tudo acontecia. Você estava na aula e de repente, entra a Liza Minnelli. Mas eu nunca tive vontade de morar fora do Brasil. Eu sempre senti que meu trabalho era aqui. E eu sentia falta de estar em grupo, de estar em um coletivo de trabalho.”

Voltou depois de 11 meses. “Quando eu voltei eu queria dançar, porque no Palácio eu estava mais envolvida em dar aulas e na assistência de direção, só fazia algumas substituições esporádicas. Aí fui para o Primeiro Ato.” Mas lá ficou pouco. “Adoro a Sueli, adoro o grupo, mas eu produzi muito pouco na época, alguma coisa não estava dando liga.”

Quando tinha acabado de se desligar amigavelmente do Primeiro Ato, Lydia recebeu um telefonema do ator Eduardo Moreira, do Grupo Galpão. O ano era 1994. “Eles tinham acabado de estrear A Rua da Amargura. Eu já conhecia o Galpão, eu já namorava o Chico (Pelúcio), eles haviam ensaiado lá no espaço do Trans-Forma quando não tinham sede. Quando eu assisti ao espetáculo, eu fiquei apaixonada, pensei que era um espetáculo que eu queria fazer. Aí a Simone (Ordones) engravidou, e eu falei brincando com eles pra me chamarem pra substituir. Quando ele me ligou, eu tinha acabado de conversar com a Sueli. Não tive nem uma semana de pausa.”

Além de entrar para o elenco de A Rua da Amargura, Lydia foi inserida na segunda versão de Romeu e Julieta junto com sua velha conhecida Fernanda Vianna, com quem trabalhara no Trans-Forma e no Primeiro Ato. “O Gabriel (Villela) me pediu pra ser essa ponte entre o grupo e a Fernanda. Era uma substituição muito delicada. Aí ele ia pedindo nos ensaios: canta aquela música, faz uma voz ali. Acabei entrando, reforçando o coro, a contrarregragem. Foi uma entrada muito suave, entrei em dois espetáculos que já estavam prontos. Estava no meio de amigos, mas era uma dinâmica muito diferente de um grupo de dança, então eu fui aprendendo muito.”

Quando começou a ensaiar Um Molière Imaginário, descobriu que estava grávida. “Eu falei com Eduardo que eu não precisava fazer o espetáculo. Mas pouco depois a Fernanda engravidou e eu entrei pra fazer substituição. Foi o terceiro espetáculo que eu fiz sem participar do processo. Depois a Inês engravidou, a Fernanda substituía ela e eu substituía a Fernanda. Depois substitui a Simone também quando ela operou.”

O primeiro espetáculo do qual Lydia participou do processo de montagem acabou sendo Partido, com o Cacá Carvalho, uma ruptura estética radical em relação aos últimos trabalhos do grupo. “Meu mundo caiu. Mais uma escola, tinha a impressão que não sabia nada, comecei tudo de novo.”

Foi só em Um Trem Chamado Desejo, a montagem seguinte, com direção de Chico Pelúcio, que Lydia começou a se sentir de fato no grupo, seis anos depois da primeira substituição. “Me sentia um pouco estrangeira até então, ali eu comecei a relaxar, me firmar de fato.” No espetáculo ela fazia par com Teuda Bara, as gêmeas Fofinha e Lindinha. Ela brinca: “Ela era uma gêmea muito espaçosa, ocupou o espaço todo da barriga da nossa mãe.”

As gêmeas Fofinha e Lindinha em Um Trem Chamado Desejo (2000). Foto: Guto Muniz.

Quando engravidou novamente em 2003 e ficou de fora de O Inspetor Geral, com direção de Paulo José, Lydia achou que era um bom momento para procurar uma base teatral mais sólida. “Eu estava precisando, queria entender os meios.” Foi assistente de direção de Júlio Maciel em A Vida é Sonho, do Projeto Oficinão, que começava a ganhar corpo no Galpão Cine Horto.

Foi sua aproximação do centro cultural: “Eu reconheci ali o Trans-Forma. No ano seguinte, o Chico me convidou pra fazer a coordenação pedagógica. Até então era um sistema de professores independentes, cada um com seu curso, mas o Chico achava que precisava ter uma cara de Cine Horto. Chamei os professores pra saber o que estava dando certo, o que estava dando errado. Tinha que ter uma base comum pro curso, ter uma continuidade, para ser uma escola mesmo. E isso trouxe uma coerência, uma consistência para a equipe. Não poderíamos mais pagar professor com porcentagem pelo número de alunos, eles precisavam ser contratados. No primeiro ano claro que teve prejuízo, mas hoje funciona perfeitamente. Foi mais um projeto construído coletivamente. Nesse momento atual de pandemia, fez total diferença sermos uma equipe. Estamos com nove turmas, achei que iam ser três.”

Não poderia ficar mais evidente o orgulho de Lydia por sua participação na escola que hoje é referência de formação teatral em Belo Horizonte. “Eu não estudei pedagogia, não fui à universidade, mas todos os lugares que eu passei eram lugares de formação muito sérios, que me marcaram profundamente. A transformação pela arte é uma transformação da sensibilidade, da forma de ver o mundo.”

Quando voltou ao Galpão, foi para ser assistente de direção de Paulo José em Um Homem é um Homem, no qual acabou entrando também como atriz. Nada mal pra quem estava em busca de um entendimento maior sobre o teatro. “Eu sou muito cara de pau, agora que estou percebendo. E as coisas acabam dando certo…”

Dali pra frente, Lydia foi ganhando confiança a cada trabalho. Em Pequenos Milagres ela impressionava com uma atuação naturalista e contundente na pele de uma mulher com um casamento náufrago. “De fato no Pequenos Milagres teve uma grande virada minha como atriz.”

Eduardo Moreira e Lydia Del Picchia em Pequenos Milagres (2007). Foto: Guto Muniz.

Ela participou de todos os trabalhos do Galpão desde então, inclusive como diretora do sarau De Tempos Somos, ao lado de Simone Ordones: “Começou ali a ideia de se limpar, do personagem, da maquiagem, de uma estrutura grande. Mais despojado, cara a cara com o público, um lugar mais horizontal. Isso me ajudou muito na direção e ajudou a nos preparar para o Marcio.”

Sim, foi com o diretor Marcio Abreu que Lydia atingiu (na minha opinião, que compartilhei com ela e ela concordou) o ápice de sua potência artística até aqui, nos espetáculos Nós e Outros. “Ele não trabalha com todo mundo da mesma maneira. Cada ator tem um universo, uma maneira, uma sensibilidade E ele saca como ele vai despertar o campo de interesse dele naquele ator. No meu caso ele me pedia para pensar menos em mim dentro do coletivo e mais nas minhas individualidades. Eu penso muito nos outros, a minha mãe me fala isso, as minhas filhas me falam isso. Ele me ajudou a cuidar mais de mim. Acho que o Nós é um marco do teatro brasileiro contemporâneo, não só na história do Galpão.” Não há dúvidas.

No processo de Outros, Marcio perguntou para Lydia o que ela queria do próximo espetáculo: “Eu disse que queria ser uma atriz mais descontrolada. Sendo o descontrole um lugar de romper meus próprios limites, minha preocupação com o público, com a marcação, uma racionalização excessiva.” No início do processo, intuitivamente, cada ator imaginou uma cena para o espetáculo: “O Toninho falou que teria uma cena de um grande silêncio incômodo. O Beto falou que tinha um abismo onde todo mundo caia. O Eduardo falou que o próximo espetáculo tinha que ser construído em cima da ruína do Nós. O Paulo André falou de uma valsa que começava linda e virava uma briga. E eu falei de uma cantora de rock muito enérgica, que não parava de cantar.”

Lydia em Outros (2018). Foto: Guto Muniz.

Todas as cenas estão na peça, inclusive o seu memorável número rockeiro, em que toca bateria e canta a feminista Deixa Ela Falar, que ela compôs com Luiz Rocha: “Meu trabalho como atriz sempre foi guiado pela música. Minha abordagem de um personagem vem mais do corpo, do ritmo, do que do texto. E aqui eu queria chegar ao meu limite. E ele ainda me pediu para tocar bateria… e nossa, pra que terapia? Toque bateria! Eu termino o espetáculo eufórica.” A música é tão impactante que entrou no repertório do show Corpo, da extraordinária cantora Simone Mazzer: “Sou fã da Simone desde o Armazém. Quando ela foi assistir o Outros, ela assistiu duas noites consecutivas e quando acabou o espetáculo ela veio falar comigo: você vai deixar eu cantar essa música né? E é tudo o que? Cara de pau.” Ou seria talento?

Em casa, Lydia tem assistido a algumas experiências de teatro virtual e não se furta em responder sobre a qualidade dos trabalhos: “A primeira coisa que eu vi virtualmente foi uma leitura entre a Simone Mazzer e a Patrícia Selonk. Não tem como não gostar dessas atrizes. Também tem coisa ruim, mas, por outro lado, tem muita coisa de teatro ao vivo que é ruim também. Acho que não cabe definir o que é agora, os estudiosos farão isso daqui a 30 anos. Cabe a nós fazer. Claro que eu prefiro um palco, uma rua, uma sala de ensaio… Mas já aqui (em casa) há tanto tempo, não dá pra cruzar os braços e não fazer nada.”

O que ela fez foi seu delicioso show Rita Lydia, que estrearia presencialmente na Gruta, mas acabou ganhando versão online para ajudar o espaço a se manter durante a pandemia. No repertório, músicas pouco óbvias de Rita como Pirataria e Cartão Postal e clássicos como Agora Só Falta Você e Pagu, que como não poderia deixar de ser, foi linkada com a sua Deixa Ela Falar.

Na quarentena, também gosta de assistir filmes com suas filhas. Elas levam pipoca pra ela durante a nossa conversa. “Elas são muito companheiras. Fora os tédios e as preocupações da pandemia, é muito bom poder ficar com elas. Eu tenho muita sorte.” Como também não poderia deixar, o DNA artístico já aflorou nas duas. A mais velha, Alice, é vocalista da banda Cayena. A mais nova, Helena, é do mundo da dança, embora, como Lydia ressalta, “ela ainda não admite”. “As mulheres da minha família são muito fortes.”

Digo a Lydia que por seu por seu trabalho no Galpão e no Cine Horto, ela é uma referência (e em muitos casos, uma amiga) para as gerações mais jovens do teatro e da dança em Belo Horizonte. Ela recebe a afirmação com humildade, mas aceita me dizer a imagem que gostaria de passar para eles: “A imagem de que a vida de uma artista não é só a parte glamourosa. Eu adoro viajar com a equipe técnica, cuidar do palco, fazer faxina. Eu acho isso uma referência importante. Ser normal, mas de vez em quando chutar o balde e enlouquecer um pouquinho.” Não poderia haver lição melhor.

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Henrique Perez
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Written by Henrique Perez

Jornalista e produtor cultural, apaixonado por teatro, cinema e música brasileira. Viver é melhor que sonhar.

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