As Atrizes do Grupo Galpão: Simone Ordones

Henrique Perez
11 min readNov 5, 2020

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Esse perfil pertence à série O Teatro Brasileiro em Revista: As Atrizes do Grupo Galpão. Para melhor compreensão do mesmo, sugere-se a leitura prévia do texto introdutório.

Simone Ordones em Um Homem é um Homem (2005). Foto: Guto Muniz.

Simone Ordones está confinada em seu sítio em Nova União, na região metropolitana de Belo Horizonte, desde meados de março, quando a pandemia do coronavírus foi deflagrada. Sua rotina consiste principalmente em cultivar suas plantas e pés de todas as coisas imagináveis — mostarda, cebolinha, feijão, mamão, chuchu, abóbora — sobre as quais discorre com entusiasmo (ela só compra o arroz, integral — como faz questão de ressaltar), cuidar dos animais e cozinhar. Em tempos normais, poderia parecer uma vida pacata para os acostumados com o caos urbano e sua velocidade, mas em tempos de confinamento, parece mais uma vida dos sonhos. Principalmente para uma atriz acostumada com a vida mambembe desde os 20 anos, e que há 26 viaja o Brasil (e o mundo) constantemente com o Galpão. “Fora a falta do teatro, do fazer teatral, estou adorando ficar perto da natureza”, ela conta. Nem em sua licença-maternidade ela ficou tanto tempo fora dos palcos.

Ela conversa comigo dentro de um carro, usando a camiseta oficial do espetáculo Nós, do qual é assistente de direção. Ela explica que no sítio tem uma conexão de internet pequena, apenas por 3G (“Estou esperando instalarem o wi-fi desde abril.”) e que para entrar no Zoom precisou ir a cidade e “filar” o wi-fi de uma loja de material de construção de um amigo. Muitas vezes ela para e cumprimenta com sorrisos e acenos pessoas que passam e pergunta se o barulho fora do carro está atrapalhando.

Se o coronavírus não tivesse fechado todos os teatros do país em 2020, Simone estrearia esse ano seu primeiro “projeto pessoal” (como descreve) em teatro desde que entrou no Galpão: um monólogo em cima do livro Moby Dick, do escritor norte-americano Herman Melville, com adaptação e direção de João Santos, autor da biografia de Teuda Bara, Comunista Demais pra Ser Chacrete (2016). “Tenho feito muitas leituras, ele me manda bastante dever de casa. Pensando pelo lado positivo, tive esse tempo de pesquisar mais, de dominar mais o texto. Mas temos ideias de sonorização, de iluminação, que precisam do espaço físico para serem concretizadas.”

Dramaturgias criadas a partir de clássicos literários estão no DNA artístico de Simone. Nascida e criada em Divinópolis, foi ali que ela conheceu o ofício de artista. “O desejo de fazer teatro veio da escola. Tinha uma semana de cultura, com várias coisas, fotografia, pintura, literatura e teatro, que foi o que eu optei. Então foi aquele primeiro estalo. Na minha escola, a gente trabalhava português muito em cima da poesia. E era um espaço que eu me identificava. Passei a ler poemas em lançamento de livros de poesia. E eu cheguei a ter um grupo de teatro em Divinópolis, mas era muito amador, aquela coisa né? Tenho que trabalhar, tenho que ir num casamento… Todo mundo tinha compromissos acima do teatro e eu já tinha vontade de ser profissional. Aí vim para Belo Horizonte em 1983. Minha mãe achava um absurdo eu fazer teatro, aí eu vim para fazer faculdade, mas também teatro. Quando cheguei em Belo Horizonte, eu me matriculei primeiro no teatro, depois na faculdade. Comecei a fazer Relações Públicas na Newton, mas não terminei. Eu fazia teatro numa escola chamada Oficina, com o Pedro Paulo Cava. Minha peça de formatura foi Galileu Galilei, de Brecht. Eu comecei a fazer algumas substituições. Substituí a Bete Coelho em uma peça do Luciano Luppi, que era meu professor, Quem Roubou o Branco do Mundo… Eu fazia muito bico. Aí entrei na Sonho e Drama.”

Na Sonho & Drama Fulias Banana, Simone ficou 10 anos. A companhia fundada em 1979 e que em 2002 virou ZAP 18, tinha como um dos pilares a transposição de obras literárias para o teatro. Lá, ela também se familiarizou com alguns dos cânones de seu trabalho futuro no Galpão: a pesquisa continuada e a coletividade. Fez espetáculos como A Metamorfose (1984), adaptação da obra de Franz Kafka, Grande Sertão: Veredas (1985), adaptação da obra de Guimarães Rosa — ambas com direção de Carlos Rocha — e A Casa do Girassol Vermelho (1989), em cima dos contos de Murilo Rubião, com direção de Cida Falabella. Lembra-se com carinho de Vida de Cachorro (1988), de Ivana Andrés Ribeiro, também com direção de Carlos Rocha. “Era um musical infantil, a gente circulou muito com ele.” Na Sonho e Drama, Simone também teve sua primeira experiência como diretora: a commedia dell’ arte O Pastelão e a Torta (1993).

Na época, Simone morava em uma espécie de “república de atores”, com vários integrantes da Sonho e Drama e Wanda Fernandes, uma das fundadoras do Galpão. Ela tinha conhecido seu futuro marido, Beto Franco, na Praça da Liberdade, no dia do velório de Tancredo Neves, em 1985: “Aquela história né? Começamos a conversar: Ah, eu faço teatro… É, eu também…” Beto ia à república para reuniões do Galpão no quarto de Wanda e eles foram se aproximando. Casaram-se em 1989.

Em 1994, um trágico acidente que levou à morte de Wanda interrompeu logo no início o processo de A Rua da Amargura, o segundo espetáculo que o Galpão faria com Gabriel Villela, depois do sucesso de Romeu e Julieta. Quando o projeto foi retomado, o diretor achou que novos integrantes fortaleceriam o Galpão, principalmente a esposa de um dos antigos integrantes. Simone entrou inicialmente para fazer assistência de direção, mas acabou ficando como atriz. “Estreei o espetáculo grávida de 6 meses fazendo a Virgem Maria grávida de Jesus. Fiz até os 8 meses, tocando bumbo e o neném dançando”. Lourenço nasceu em 1995.

Simone fala sobre criar o filho em meio ao teatro: “Hoje eu tenho pesar de só ter tido um filho, mas foi uma opção de vida pelo teatro. Como minha família era do interior, não tinha ninguém para me ajudar. Pra mim não foi fácil, nas viagens do Galpão eu levava panela, aquecedor, quando chegava na cidade colocava o Lourenço no canguru e ia comprar verduras e legumes frescos, não queria ficar dando danoninho. Eu sentia muita culpa, e hoje ele fala pra mim ‘que isso mãe?’” A culpa da mãe virou o orgulho do filho, 25 anos depois.

Em um dos episódios da série virtual Pausa pro Café, que o Galpão tem feito durante a quarentena, Simone conta um dos perrengues que passou, com o filho crescendo em meio a vida mambembe. A história é impagável. Impossibilitada de ler os comentários por conta de seu probleminha com a internet, Simone gargalha quando eu leio para ela alguns.

A vida offline também deixa Simone longe das experimentações que têm sido feitas no ambiente online durante a quarentena: “Vi muito pouca coisa… Me parece uma nova forma de arte, intermediária entre cinema e teatro… É uma pesquisa válida, encontrar uma solução enquanto não podemos fazer teatro. Mas é muito diferente… O teatro é a arte que mais trabalha os sentidos… então a câmera amplia algumas possibilidades ao mesmo tempo que reduz várias outras… A forma como o público reage cada dia faz o espetáculo.”

Ao contrário de algumas de suas colegas, Simone não parece muito interessada em uma carreira na televisão ou no cinema: “ Novela não tem nada de novo, dura aquele tempão, você não sabe o desfecho do personagem, a narrativa fica incoerente…Cinema eu já tenho mais curiosidade. Ano passado eu fiz um curta, o meu personagem conduzia a história, foi um desafio legal. Mas eu não procuro, não faço teste, então é só se bater lá em casa pra me convidar, como foi o caso desse curta. Já fiz teste no passado, mas é aquela coisa né, falam que foi ótimo, mas não dá em nada. Eu gosto do teatro porque eu posso tudo… Posso fazer um homem, um bebê, um cachorro, uma árvore… É uma libertação da vida cotidiana pra mim… No teatro, eu posso tudo. Eu me sinto poderosa no teatro, dona do poder da criação.”

Homem ela já fez. Em uma memorável interpretação, foi o cego Alceu em Till, a Saga de um Herói Torto (2009), com direção de Júlio Maciel. “O Till é uma delícia… O Júlio não queria me dar o Alceu, mas eu me apaixonei pelo personagem. Ele é muito simples, sonhador, amoroso… Aí pedi pra fazer workshop e acabei dobrando ele.”

Simone como Alceu em Till. Ao fundo, Eduardo Moreira. Foto: Guto Muniz

Outro personagem icônico na trajetória de Simone no Galpão é a Viúva Leokadia Begbick, a cafetina que comanda a “cantina” do acampamento de guerra em Um Homem é um Homem (2005), de Bertolt Brecht, com direção de Paulo José. Espécie de figura mítica que permeia outras obras de Brecht, como a ópera Ascensão e Queda da Cidade de Mahagonny (1930), composta com Kurt Weill, a viúva já foi interpretada nos palcos por grandes atrizes como Patti LuPone e Olympia Dukakis. “Eu ganhei um personagem com muita responsabilidade. O Paulo José me desafiou muito, mas me deu muito apoio. É um mestre. Eu fiquei tensa, com o peso da personagem, o tanto de texto… Toda vez que eu falo da Begbick, me vem a imagem do Paulo José. Ele sabe tudo de Brecht. Foi um processo muito bonito pra mim, guardo num lugar especial do coração.” No ano que vem, o Galpão pretende montar um cabaré inspirado no universo brechtiano: “Vai descer bem um Brecht nesse momento do país. Pro Brasil vai ser bom.” Não há dúvidas.

Em 2014, Simone e sua companheira Lydia Del Picchia se tornaram as primeiras atrizes do Galpão a assinarem uma montagem do grupo, o sarau De Tempo Somos: “É engraçado você estar dentro (como atriz) e estar fora (como diretora)… Por exemplo, no De Tempo Somos a gente está dentro… Nossa visão como diretoras que também estão fazendo o espetáculo é muito mais auditiva do que visual… A Lydia lida bem com isso, mas quando a gente estava no processo, eu queria fazer a direção de fora… Às vezes eu me sinto insegura de não ver o todo… Será que o som foi bom? Será que a luz foi boa?”

Simone também dirigiu, além de O Pastelão e a Torta, na Som e Drama, os espetáculos O Baile (2006) e O Firme Soldadinho de Chumbo (2017), ambos em projetos do Galpão Cine Horto. “Eu acho muito gostoso dirigir. Estar no processo de criação não só como um personagem, mas como um todo. É muito divertido, muito estimulante… É uma pena que eu não consiga escrever… tenho bloqueio para dramaturgia… é uma pena, seria uma viagem ainda mais radical em todas as dimensões do teatro… Não que eu não goste de ser atriz…”, ela acrescenta depressa. “Eu gosto de teatro porque eu me sinto livre. E essa sensação de liberdade eu tenho tanto como atriz quanto como diretora. A liberdade da imaginação, da criação. Gosto mais de ensaio do que de apresentação. Só de pensar que você pode errar é mais tranquilo… Quando o espetáculo está pronto para ser apresentado para o público, tenho que me estimular constantemente para não cair na estagnação.”

Esse estímulo Simone parece ter encontrado nas montagens mais recentes do Galpão, com o diretor Marcio Abreu. Ela não fez Nós como atriz. “Eu tive um câncer de mama em 2000… Quando a gente começou o processo de Nós, tive um reincidência, um caroço debaixo do braço… não precisei fazer quimioterapia nem radioterapia, dessa vez, mas fiquei muito abalada, muito frágil… Aí faltando um mês para a estreia o assistente de direção precisou sair e eu já estava melhor, então acabei entrando.” Como Marcio não viaja com o grupo, Simone é uma espécie de diretora residente. Ela pode ver de fora o todo que a deixava insegura no De Tempo Somos: “É uma situação privilegiada. Qualquer problema maior, chamo o Marcinho… Mas as observações do cotidiano… Adoro assistir o Nós, assisto todos os dias com muita vontade. Essa questão da presença, da permanência, ele exige muito do ator…Se você ligar o automático num espetáculo do Marcio Abreu, você não dá conta de fazer.”

Como atriz, ela foi dirigida por Marcio em Outros, uma experimentação ainda mais radical do que Nós. O monólogo do ‘Eu não pode, nós pode’ que ela diz no espetáculo vem de uma insegurança pessoal de Simone: “Ele proibiu todo mundo de falar eu e eu tava apanhando nos ensaios… Aí um dia fui conversar com ele e ele foi digitando tudo que eu tava falando… Depois ele colocou no texto o que eu tinha dito. Eu me vi muito cheia de vícios no processo de Outros. É mais cômodo ter um personagem para se escorar. Foi uma virada de chave pra mim como atriz.”

Simone em Outros (2018). Foto: Guto Muniz

Dentro do Galpão, Simone é a responsável pela compra e manutenção dos objetos utilizados em cena. Ela fala sobre a dificuldade de conciliar os interesses pessoais com os coletivos no grupo: “Eu sempre sou levada pelo entusiasmo do coletivo em determinados projetos, mesmo que não seja o que eu queria originalmente. O fato do Galpão trabalhar com diretores externos também traz sempre um frescor, uma novidade, um aprendizado novo. E o coletivo respeita os projetos pessoais.”

Sua peça Moby Dick, será a primeira dentro da Jatobá Produções Artísticas, que criou com Beto há quase uma década: “Aqui no sítio tem um pé de jatobá. É uma árvore linda, com uma folha brilhante…”

Para o público que acompanha o Galpão, uma das primeiras imagens que vem a cabeça quando se fala em Simone Ordones é o trombone de vara que ela toca em cena desde Um Molière Imaginário, em 1997. “Eu aprendi a tocar piano, mas não dava pra andar com ele na rua. O trombone tem uma sonoridade incrível, o timbre mais grave. Eu tive um professor, o Paulão (Paulo Lacerda foi integrante da Orquestra Sinfônica de Minas Gerais), do Palácio das Artes, que era apaixonado pelo instrumento, E ele me dizia: ‘o que é um piano perto de um trombone?’ E ele é teatral né? Ele é visual, ocupa um espaço grande, tem um movimento, acho que tem tudo a ver com o teatro…”

O instrumento que ela toca hoje é o terceiro desde que entrou no Galpão. O primeiro, que ela comprou de um músico da banda do corpo de bombeiros, foi destruído em uma apresentação de rua ao prender na saia de Inês e ser arrastado por um chão de pedras. “É um instrumento muito sensível.” Conto para ela de uma amiga que toca trombone em blocos de carnaval e quis aprender o instrumento ao ver pela primeira a primeira mulher tocá-lo. A mulher era Simone.

Simone toca trombone em cena de De Tempo Somos. Foto: Guto Muniz

Pergunto se a mãe de Simone, que tinha medo da vida mambembe da filha quando ela saiu de Divinópolis, acompanhou a carreira dela no teatro: “Minha mãe adorava assistir A Rua da Amargura. Ela era muito religiosa, se emocionava comigo fazendo a Virgem Maria… Ela não queria que eu fizesse teatro, mas ela tinha curiosidade, ia nas estreias, desde a Sonho e Drama. O não querer dela era mais medo do futuro… É uma profissão muito sacrificante, a gente depende de um tanto de coisa, é muito instável. Tenho que agradecer muito por poder viver do teatro. É muito difícil, exige tempo… Seria justo que todo ator tivesse um salário.”

A pandemia e a necessidade de fazer as entrevistas à distância me deixaram inseguro sobre a viabilidade de continuar o projeto. Fiz a primeira entrevista em 19 de agosto, dia do artista de teatro. Não me lembrava da data. A coincidência dionisíaca e a paixão da fala de Simone me fizeram ter certeza que daria certo. Ela me diz: “A gente tá num desafio… Mas a gente tem que ter coragem.”

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Henrique Perez
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Written by Henrique Perez

Jornalista e produtor cultural, apaixonado por teatro, cinema e música brasileira. Viver é melhor que sonhar.

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